MOTOCICLISMO COMO ESTILO DE VIDA

Nos últimos anos, a partir da segunda metade da década de 90, em Curitiba, estão se organizando clubes de motociclistas que se inspiram nos moto-clubes existentes nos Estados Unidos.

Após a Segunda Guerra Mundial, centenas de veteranos das forças armadas voltaram para os Estados Unidos, desorientados e sem qualquer apoio. Vários deste ex-combatentes pilotaram motos, em especial as da marca Harley-Davidson, e após a guerra continuaram a pilotar motos como as que eles conheceram durante a guerra.

Estes ex-combatentes, segundo o jornalista norte-americano Brock Yates (1999), foram alterados para sempre. Tornaram-se violentos e incapazes de se adequarem as estruturas de uma sociedade organizada devido as suas experiências durante anos de guerra. Eles se organizavam em grupos de amigos, mas também mantiveram as formas hierárquicas militares que eles conheciam.

Nas décadas seguintes uma dessas gangs de motociclistas em especial tornou-se, através da mídia, o símbolo maior do que seria um grupo de motociclistas. O Hell’s Angel, que com um crânio com assas como brasão, tornou-se ainda mais famoso pelo tumultos que seus integrantes provocaram quando foram contratados como agentes de segurança pelo grupo musical Rolling Stone na década de 60.

Alguns eventos, mesmo que isolados, foram determinantes para a ligação que sempre é feita entre grupos de motociclistas e a violência. Um destes eventos, e o mais importante, foi o Massacre do Dia de São Bartolomeu, também conhecido como a Batalha de Hollister. Com estes eventos ocorrendo tão próximos a sede da indústria cinematográfica norte-americana, surgiram filmes tendo como motociclistas de suas gangs como violentos e desordeiros. Entre vários, está o filme The Wild One, com Marlo Brando e Lee Marvin como líderes de gangs de motociclistas rivais que espalham o medo. Filmes que apresentam em seus enredos os motociclistas como anti-heróis, predadores que não são detidos pela lei, arruaceiros por excelência.

Apenas em 1969, um filme procurou retratar de maneira diferente os motociclistas. O filme Easy Rider é uma saga tragicômica, que procura retratar como estranhos podem ser vítimas da discriminação e o senso-comum sobre os motociclistas. Superficialmente, podemos dizer que o filme Easy Rider mostra a paranóia, as drogas e a anticultura dos anos 60. Segundo Yates, o filme demonstra que, quer queria ou não, os motociclistas seriam rebeldes que não se adaptaram as normas da sociedade, formando um estilo próprio, livre e independente. Estilo este que marcou os anos 60 e 70 através dos movimentos hippies e beatnick.

Durante o ano de 1999, realizei uma pesquisa etnográfica junto aos moto-clubes da cidade de Curitiba e com a aplicação de questionários, pude constatar que não são os jovens o grupo dominante: 60% dos fundadores de moto-clubes estão na faixa etária dos 30 a 50 anos, o que sugere que sofreram, durante a sua juventude, influência direta da mídia norte-americana através de filmes e programas que retrataram os primeiros grupos de motociclistas e sua atuação na história daquele país.

Os filmes e "enlatados" norte-americanos são, como qualquer outro objeto, produtos propensos ao consumo, não apenas no seu local de origem, mas também em outros países. Isso promoveria o intercâmbio entre grupos de consumidores de diferentes regiões e possivelmente através deste intercâmbio, auxiliado também pela abertura de mercado promovida no início da década de 90 que possibilitou que indivíduos interessados em fazer o uso da motocicleta um lazer e formassem grupos e clubes, com padrões importados, transmitidos principalmente através da mídia.

Em Curitiba, a motocicleta é um objeto de consumo com representações simbólicas diferentes entre as classes sociais. A apropriação de um estilo de vida a partir do motociclismo, irá mudar de acordo com a classe em que o indivíduo ocupa. Apesar dos grupos de motociclistas terem em seu discurso que não há diferenciam por classe, que todos os motociclistas são iguais naquele meio, observamos que há a reprodução de formas de classificação da sociedade entre os motociclistas e entre os moto-clubes.

Na classificação que desenvolvi, a primeira categoria é daquelas pessoas que têm a moto como objeto de lazer - é o caso dos profissionais liberais, como médicos, advogados, publicitários, engenheiros e arquitetos; assim como diretores e gerentes de empresas, funcionários públicos, trabalhadores do comércio, estudantes universitários e empresários que trocam o carro pela moto em seus passeios de fim-de-semana, saindo de suas casas, apartamentos e condôminos fechados de alta segurança, cuja a faixa etária principal é sim de 30 a 45 anos. A segunda categoria é constituídas por aqueles que vivem da moto, esta categoria é formada por dois grupos, para os quais a moto se associa ao trabalho: donos de lojas, revendas ou de oficinas de motos, com a mesma faixa etária daqueles que possuem a moto como objeto de lazer; e os "operários da moto": moto-boys, mecânicos e vendedores, que de maneira geral, têm faixa etária de 18 a 30 anos.

Esta diferenciação ficou visível num dos encontros semanais organizados em Curitiba, o "Moto e Família", aonde os motociclistas se dividiam espacialmente. e reproduzindo a organização social vigente na sociedade curitibana e brasileira.

"Não existe nem pobre nem rico. Um indivíduo com uma moto podre ou um com uma moto importada último tipo, valendo milhares de dólares, confraternizam como se conhecessem de longa data, como se fossem irmãos de longa jornada" (Manuel, 38 anos, advogado)1.

O discursos dos motociclistas diz que todas pessoas seriam iguais e não haveria distinção por classe social ou qualquer reprodução de outros tipos de classificação empregados na sociedade urbana. Realmente, este é um discurso muito bonito, mas não é o que acontece não prática.

Pessoas de classes alta e média alta, que podem possuir motocicletas caras, entre US$ 15.000 e US$ 40.0002, estacionavam as suas motos no centro dos espaços de encontros, junto aos postes de iluminação Já as pessoas de classe média, com motos um pouco mais baratas, entre US$ 6.000 e US$ 15.000, mas que ainda não poderíamos chamar de populares, ficam em torno das classes altas e com menos iluminação. E os "operários da moto", com as suas motocicletas de baixa cilindradas e de uso urbano, com preços entre US$ 1.500 a US$ 6.000, estacionam na periferia aonde não há muito iluminação e não são "visíveis". Na tentativa de não serem identificados como "operários", era comum que moto-boys retirassem a caixa de transporte antes de se dirigirem para os encontros.

A segregação deixa de ser feita com muros e passa a ser feita através do domínio simbólico, feito através das motocicletas e adereços, procurando simular os moto-clubes norte-americanos, muito bem retratados em filmes como The Wild One e Easy Rider.

Num espaço social, como o que estamos retratando aqui, estão presentes sistemas de diferenciação formadas através da tradução simbólica de diferentes fatores que já estão inscritas nas vidas dos motociclistas. O estilo de vida é uma formação sistemática de componentes de diferenciação que operam em conjunto com o ambiente, ou habitus, que apresentam as preferências e necessidades dos indivíduos.

" [...] Constituído num tipo determinando de condições materiais de existência, esse sistema de esquemas geradores, inseparavelmente éticos ou estéticos, exprime segundo sua lógica própria a necessidade dessas condições em sistemas de preferências cujas oposições reproduzem, sob uma forma transfigurada e muitas vezes irreconhecível, as diferenças ligadas à posição na estrutura da distribuição dos instrumentos de apropriação, transmutadas, assim, em distinções simbólicas." (Bourdieu, 1994)

O estilo de vida, segundo Bourdieu, é o conjunto unitário de preferenciais distintas que se exprimem através de subespaços simbólicos, como roupas, mobília, linguagem por exemplos, uma unidade de estilo que está em acordo com o meio em que se está operando. Os motociclistas reproduzem em seus locais de entretenimento um sistema de diferenciam através de práticas simbólicas a posição social que o indivíduo ocupa. Suas roupas, calçados, adornos e motos, bem como cigarros ou charutos, bebidas e alimentos que consomem, seus gestos, linguagem bem como bagagem de conhecimento manifestam a distinção e servem para mapear e enquadrar os indivíduos dentro de categorias por eles já conhecidas e presentes em nossa sociedade, que são econômica, social e profissional.

Na formação de um estilo de vida, um dos pontos mais importantes com os quais devemos ter cuidado é o da "estilização de vida", que é dependente e só poderia ser atingida a partir de determinadas condições econômicas que permitem uma menor preocupação com necessidades de subsistência. Colocadas em uma estrutura de classes, medidas as possibilidades e impossibilidades de acordo com o poder aquisitivo de cada classe, é possível estabelecer disposições que estejam ligadas a cada classe. Se observarmos a necessidade como referencial, as diferentes classes demonstraram escolhas que fazem parte de seu próprio cotidiano, implícitas do ethos que as necessidade lhes impõe, recusando ao mesmo tempo as necessidades de outros.

Motocicletas de baixa cilindradas, de uso urbano e de trabalho não são vistas como objeto de lazer. Logo aqueles que as possuem são colocados e se colocam em um classe distinta. A medida em que a distância com a necessidade aumenta, aqueles de classes mais abastadas, com algumas exceções, não vinculam a motocicleta ao trabalho, já que não precisaram dela para suprir as suas necessidades mais imediatas, podendo assim formar um estilo próprio, sem estar vinculado ao seu dia-a-dia e que se tornam referenciais para os das classes mais baixas.

A motocicleta só pode ser vista como libertadora a medida que não precisa estar "presa" a ela para suprir as necessidades, passando assim para uma ordem estética, tornando-se um símbolo de status quando desligada das necessidade imediatas. Como também ela só pode assumir a posição de status quando é pensada a partir de um capital cultural adquirido ou herdado, sob o controle de uma minoria e irá determinar o posto de um indivíduo, ou seja, a partir dos referenciais norte-americanos que só poderiam ser adquiridos por sujeitos com um determinado grau de escolaridade e conhecimento, bem como outros símbolos de status presentes e engendrados coletivamente é que se determinará a posição de um sujeito no meio. As classes sociais se distinguem mais do que se reconhecem, já dizia Bourdieu.

O gosto ou o capital cultural são adquiridos através da educação. Acreditar na existência de um "gosto natural" só iria recusar a existência de diferenças, bem como todos os mecanismos de luta entre classes. Tanto a aquisição de cultura quanto utilização, são formas de aprendizados, geram acumulo de saber, mas devesse racionalizar aquilo que é aprendido.

A educação formalizada permite a melhor operação do sistema simbólico, permitindo a racionalização através de regras, preconceitos, receitas, ao contrário de se remeter a improvisações. Os indivíduos e grupos de classes mais abastadas terão um domínio maior dar práticas simbólicas existentes no motociclismo por justamente possuírem um bagagem cultural que permite isso. Já aqueles que as necessidades falam mais alto, possuem seu conhecimento através de vivência, não terão o total controle do simbolismo, restando a ele apenas reproduzir, dentro de suas limitações, o que "determinado" pelas classes com maior capital intelectual.

"[...] O estilo de vida das classes populares deve suas características fundamentais, compreendendo aquelas que podem parecer como sendo as mais positivas, ao fato de que ele representa uma forma de adaptação à posição ocupada na estrutura social [..]" (Bourdieu, 1994)

Da mesma forma que as classes populares não detém as os instrumentos de produção, são desapossados dos instrumentos de apropriação simbólica das máquinas a que eles servem, já que não possuiriam capital intelectual para a apropriação legítima. Dominados pelas máquinas, não possuem o referencial teórico necessário para domina-las e reencontram no trabalho o princípio de ordem livre da necessidade de ser justificado. As classes populares possuem menos tempo para disponibilizar ao lazer, buscando no trabalho formas de entretenimento. Moto-boys, mecânicos, vendedores de motocicletas buscam no seu "ambiente de trabalho" a sua forma de lazer, diferente daqueles que exercem outras formas de trabalho (burocrático, em geral) e buscam na motocicleta o lazer. Na pesquisa realizada entre os motociclistas curitibanos que viam a moto como um objeto de lazer, 50% usam a moto apenas para o lazer, 5% apenas para o trabalho e 45% para ambos (aqui inseridos não apenas aqueles que tiram o seu sustento com a motocicleta, mas que a utilizam como meio preferencial de locomoção até ao seu local de trabalho).

O controle do sistemas de classificação e distinção simbólica desde meio ficaria, então, nas mãos daqueles que julgam possuir maior preparado técnico, que formam uma hierarquia social dos indivíduos, na luta entre as classes, as classes operárias do motociclismo entram em choque com os detentores de saber através da substituição dos elementos, configurando a idéia de que os detentores do saber, que buscam os referenciais históricos, entram pela "porta da frente", enquanto que aqueles que entram no meio através do trabalho, entrariam pela "porta dos fundos" e reconhecem o saber daqueles com um maior grau de conhecimento e condições econômicas. Bem como reconhecem aqueles que não possuir o saber necessário, mas procuram reconhecimento através do poder econômico e do consumo exagerado.

A divisão espacial se deu pelo reconhecimento da legitimidade do controle dos códigos simbólicos existentes entre os motociclistas. Não foram poucas as vezes que pude presenciar, nos primeiros momentos dos encontros, quando os motociclistas estavam chegando, um motociclista com uma moto mais barata parar no espaço das classes altas e com a chegada de integrantes desta classe, retirar a sua moto e para-la junto aos seus iguais, na periferia.

As classes das periferias procuravam reproduzir as representações simbólicas dentro de suas limitações econômicas, com roupas mas simples, adorno, por vezes, extravagantes ou o que era mais comum, retirar a caixa de transporte usada pelos moto-boys para ir aos locais de encontro, buscando assim, não ser identificado como tal.

"De 10 harleyros, 9 são babacas", disse-me um motociclista. Os harleyros são aqueles que possuem uma motocicleta da marca Harley-Davidson e mantêm o maior número de referenciais históricos. São os mais tradicionalistas. Não é qualquer motociclista que consegue adquirir uma motocicleta da Harley-Davidson aqui no Brasil3, apenas aqueles com maior poder aquisitivo podem se dar ao "luxo" de ter uma motocicleta desta marca. Nas narrativas recolhidas entre aqueles que não possui uma Harley-Davidson, aqueles que as possuem, com algumas exceções, são pessoas que se envolvem apenas com outros que as tenham também, pois se achariam superiores ao outros. Como também pude presenciar nos encontros, comentários desfavoráveis as motocicletas de outras marcas, principalmente de origem japonesa, mesmo assumindo que as motos da marca norte-americana serem famosas por apresentarem problemas técnicos.

Para Featherstone (1995), o consumo deve ser visto não apenas pela utilidade dos materiais e a sua aquisição pelo seus valores de uso, mas sim pelo consumo dos signos a eles atribuídos. Isto promoveria a fantasia, como o uso deixa de ser a "essência" da mercadoria, os meios de comunicação influenciam a compra através da simulação de um mundo fantástico, aonde o produto a ser vendido é o ponto máximo de uma vida feliz e saudável. Não há mais a preocupação em demonstrar as qualidades físicas dos produtos, o que importa é o que eles significam. Ao me ver, a aquisição de motocicleta Harley-Davidson não forma apenas uma distinção de classe e de status, como também aqueles a possuem buscam para si um poder de legitimação do mito gerado em torno da Harley-Davidson e a sua participação no processo histórico na formação de moto-clubes norte-americanos..

Numa reportagem apresentada por Luigi Poniwass (1999), ele procura tirar a imagem de que os harleyros são ricos, dizendo que muitos daqueles que possuem uma Harley-Davidson, as reconstruíram à partir de sucatas. De fato qualquer pode ter uma "Harley", mas para personaliza-la, equipa-la é preciso poder aquisitivo, bem como não basta ter uma motocicleta para ser um harleyro, é preciso vestir-se como tal, com roupas da marca de preferência.

Este jornalista diz que não é preciso ter uma moto para ser um harleyro, como prova apresenta o caso de um dos mecânicos da concessionária, que ainda não possui a máquina que ele concerta e acerta todos os dias, é dono de uma motocicleta japonesa, mesmo assim, quer e pode ser considerado um. Pode por que ele provavelmente está operando dentro dos outros elementos simbólicos necessários para ser um harleyro (conhecimento técnico, e provavelmente, vestuário). Sua inserção e identificação como harleyro se dá através de seu trabalho, assim como os moto-boys dentro de todo o conjunto. Ou seja, como Bourdieu disse, "pela porta dos fundos".

Este estilo de vida, que está tomando força a cada ano, apenas é mais um que se forma na rede diversificada de estilos de vida. Segundo Featherstone, o elevado número de novos estilos de vida estaria desequilibrando a ordem hierárquica já vigente na distinções sociais, aonde indivíduos pode ficar "presos" no tempo, não reformulando as práticas simbólicas. Mas o que vemos neste caso é a reformulação de códigos simbólicos para definir a ordem e formas de classificação já vigente na sociedade, como a de classe.

O estilo de vida e o consumo dos bens ligados ao motociclismo se dará dentro de uma série de práticas simbólicas, que por mais inovadoras, fazendo parte de uma, talvez, "cultura mundial". Acaba sendo formulada te tal forma que reproduz a ordem já vigente na sociedade. Por mais que os símbolos utilizados mudem, haverá elementos da rede social que se manterão e continuarão a ser reproduzidos, porém com ordens simbólicas diferentes.


1 Os nomes dos depoentes são fictícios.
2 Valores aproximados considerando motocicletas novas, no ano de 2000.
3 Segundo a revista especializada "Motociclismo Magazine", no mês de abril de 1999, o preço de uma motocicleta da marca Harley-Davidson variava entre US$ 14.000 e US$ 32.400.

Bibliografia utilizada neste texto:

BOURDIEU, Pierre – (Org.) Renato Ortiz - Gostos de classe e estilos de vida. Coleção Grandes Cientistas Sociais, Ed. Ática, São Paulo, SP, 1994.

FEATHERSTONE, Mike. Estilos de vida e cultura de consumo. IN: Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, SP. 1995.

FIORAVANTI, Raphael Hardy. No asfalto curitibano: formação e organização de moto-clubes na cidade de Curitiba. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2000.

PONIWASS, Luigi. O que são os harleyros?. Revista Top Magazine. Ano 1, nº 11, págs. 42-47, Curitiba, junho de 1999.

YATES, Brock. Outlaw Machine: Harley-Davidson and the search for American soul. 1º edition. Ed. Lityle, Broen and Company, New York, the U.S.A, 1999.


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